< ATENÇÃO: SPOILERS! >
Por alguma razão Versailles no Bara é a rainha absoluta da manga shoujo, um clássico e um dos maiores sucessos da manga e anime de sempre, e Riyoko Ikeda um dos poucos nomes da manga shoujo conhecidos no Ocidente.
A história segue as vidas de duas mulheres, uma real e outra ficcional, que partilham a data de nascimento e a corte francesa do séc. XVIII. A real é Marie Antoinette, a mais que famosa Rainha de França que perdeu a cabeça, e a ficcional é Oscar François de Jarjayes, a mais nova das filhas do General Jarjayes, que a criou como um homem, à falta de um varão, para seguir os seus passos e carreira militar.
Havendo pouco tempo para contar estas duas histórias, que se entrelaçam, percebo a escolha de focar o filme na personagem ficcional, Oscar, já que a história de Antoinette tem sido sobejamente contada e até de forma sublime. Até porque a história de Oscar é muito invulgar e emocionante, se bem que por vezes anacrónica. Mas Não procuro o realismo em Versailles no Bara, mesmo tendo Ikeda estudado a História Europeia e baseado a sua manga, de forma bastante realista e correcta, coisa que costuma ser um milagre no que toca à perspectiva japonesa sobre a Europa e outros países do Ocidente, quase sempre distorcida, mas, apesar de tudo, menos que a perspectiva Europeia sobre o Japão, cheia de clichés e preconceitos, principalmente antes da globalização dos anos 80 e 90. Aliás, com medo da simplificação de uma adaptação para anime da sua manga mais popular, Riyoko Ikeda resistiu quase 10 anos, até que a dupla mágica do anime lhe foi proposta, Osamu Dezaki na realização e Shingo Araki na direcção de arte.
Versailles no Bara, o filme de 2025, é uma produção de luxo, com excelente character design, excelentes gráficos, excelente animação, uma paleta de cores muito bonita e, mesmo os CGI e efeitos 3D, não sendo eu fã das texturas e padrões aplicados digitalmente desta forma, são tão bons que nem parece que o Japão tem sido lento em adaptar a tecnologia, que agora domina tão bem, até mesmo uma pessoa atenta tem dificuldade em encontrar as costuras.
Mas o argumento, tendo uma base tão rica e emocionante, é mau. Resolveram dispor a narrativa em episódios curtos, intercalados por videoclipes, muito bem animados, mas sem grande razão de ser, e tapar os buracos narrativos com uma narração que pelo menos podia ter emulado as narrações épicas dos animes dos anos 70 e 80. Com isso perde-se completamente os crescendos narrativos, a montanha-russa emocional que é tanto a manga como a série e o filme fica uma chatice, só apanhando o passo nas cenas finais, da Revolução Francesa e o clímax final.
Desde que estreou o filme Marie Antoinette, de Sofia Coppola, tenho a certeza que, além da biografia de Antonia Fraser, ela viu a série Beru-Bara, pois esteticamente e a perspectiva feminina destacam-se em ambos. Este filme, Versailles no Bara, claramente foi beber ao filme de Sofia Coppola, o que daria um excelente fechar do círculo, se tivessem aproveitado as boas ideias do filme e não se tivessem perdido na estética. Por mais deslumbrante que seja a arte de Ikeda e de Araki, o que realmente torna Beru-Bara um clássico e uma manga a ler, é a narrativa, o modo como está construída e a perspectiva do ponto de vista feminino, visto de uma forma generosa, e não acusadora. É aqui que o filme falha, Marie Antoinette não é nem protagonista nem personagem secundária, não existe um ponto de vista coerente ao longo do filme e a sua morte é uma mera nota de rodapé. Apesar de incialmente a "Rosa de Versalhes" e protagonista da história ser Antoinette, a manga é sempre contada do ponto de vista de Oscar, a real protagonista da história, mesmo a partir dos primeiros capítulos. Cenas históricas importantes, como o Caso do Colar e outras muito representativas da decadência da realeza francesa, não deixam de estar presentes, pois explicam bem as mudanças de perspectiva do povo em relação a Antoinette e porque os acontecimentos históricos se deram como deram. Ikeda criou toda uma narrativa paralela, de Rosalie, meia-irmã da infame Jeanne de Valois. Rosalie aparece apenas numa curta cena, onde nem sequer são fiéis à manga, onde um nobre mata cruelmente a tiro uma criança esfomeada, cena essa que provoca a mudança de opinião de Oscar em relação à situação do país. A criança desaparece e Rosalie desaparece com ela. Será que a indústria do anime também foi contaminada pelas ideias woke? Há também a narrativa de Bernard, personagem que aparece apenas uma vez, e que conta toda a perspectiva da imprensa subversiva, da resistência e dos intelectuais que conspiraram a nova França.
Certo que não seria possível incluir isto tudo, mas estas narrativas paralelas complementam e reforçam as decisões de Oscar e fazem avançar a narrativa de forma plausível. Se não tivessem perdido tanto tempo com videoclipes e tivessem um argumento mais sólido, talvez o filme fosse mais equilibrado e justificasse tanto luxo. Outra coisa que me irritou nos videoclipes foram os anacronismos gráficos, com uma Paris de Hausmann e uma estética Art Nouveau... sim, coisas de um século depois. O único anacronismo da manga é a Ópera Garnier, que ainda não tinha sido construída e algumas liberdades criativas nos figurinos.
Para quem conhece e gosta da história de Beru-Bara, é um filme a ver; mas para quem não conhece, leiam a manga e/ou vejam a série dos anos 80. Este filme é a pior maneira de ser introduzido a este universo.
Sem comentários:
Enviar um comentário